Especialistas apontam que o modelo agropecuário é causa central do problema, rompendo o ciclo das águas e ameaçando o Pantanal
Um release do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) divulgado nesta semana traz à tona um diagnóstico importante, mas que para especialistas soa como um alerta grave e subdimensionado. A “Sala de Situação dos Rios” do órgão confirma que, desde 2019, os rios do estado registram cotas cada vez mais baixas, um reflexo da redução das chuvas e da incapacidade de recuperação plena das bacias hidrográficas.
A avaliação do governo, porém, ao se limitar a constatar o fenômeno e apontar para a "necessidade de chuvas regulares", ignora solenemente uma das causas-raiz do problema, amplamente discutida por pesquisadores e organizações ambientais: a transformação acelerada do Cerrado em lavouras de soja, que compromete a recarga dos aquíferos que alimentam os rios sul-mato-grossenses.
O Diagnóstico Oficial e a Crítica Escondida nos Números
O Imasul merece crédito por manter um sistema de monitoramento contínuo. Os dados são valiosos. Quando o diretor-presidente André Borges afirma que o monitoramento é "essencial para planejar ações", a pergunta que fica é: que ações estão sendo planejadas para além da medição? O técnico Leandro Neri Bortoluzzi acerta ao dizer que a recuperação depende do "equilíbrio do regime hidrológico". No entanto, o release não avança em quais políticas públicas estão sendo implementadas para restaurar esse equilíbrio, já fragilizado.
O biólogo Gustavo Figueirôa, diretor do Instituto SOS Pantanal, vai direto ao ponto: “Tudo que acontece no planalto reflete na planície em forma de falta d’água”. Ele explica que a substituição da vegetação nativa por monoculturas em áreas de nascentes e recarga hídrica faz com que o solo perca sua capacidade de infiltração. "A água escorre, não abastece os aquíferos e deixa o Pantanal mais seco", completa. Esse é o mecanismo silencioso que os boletins de cota fluvial registram, mas que a comunicação oficial não ousa explicar.
Os Números que o Release Não Mostra
Enquanto a Sala de Situação ampliava de 13 para 14 pontos de monitoramento entre 2014 e 2023, a paisagem de Mato Grosso do Sul mudava radicalmente. Dados analisados pelo Campo Grande News, da Ambiental Mídia, revelam que a área plantada de soja no estado quase triplicou nas últimas três décadas, saltando de 1,28 milhão de hectares em 1990 para 3,69 milhões em 2022.
Essa expansão colossal pressiona diretamente as bacias do Paraná e do Taquari, verdadeiras artérias que mantêm vivos os rios estaduais e o próprio Pantanal. O rompimento do ciclo das águas, causado pela impermeabilização do solo pelo agronegócio, torna as cheias sazonais – essenciais para a vida no bioma – mais imprevisíveis e escassas.
Ameaça Econômica e a Urgência de uma Visão Sustentável
A crise hídrica monitorada pelo Imasul não é apenas uma tragédia ambiental; é uma bomba-relógio econômica. O próprio agronegócio, motor da economia estadual, depende da estabilidade climática e da disponibilidade de água que seu modelo de expansão está ajudando a comprometer.
Figueirôa defende uma mudança de paradigma urgente: “O modelo atual de expansão agrícola, com desmatamento e uso intensivo de agrotóxicos, é insustentável”. A restauração de nascentes e áreas degradadas, segundo ele, deveria ser vista como aliada dos produtores. “Ter uma área protegida é de interesse do produtor rural, que precisa da água e do solo para continuar produzindo no longo prazo”.
A conclusão é inescapável. O monitoramento do Imasul é uma ferramenta necessária, mas insuficiente. Diante de dados tão claros sobre a tendência de seca, é preciso coragem para ir além da publicação de boletins e enfrentar o cerne da questão. Informar a sociedade sobre a baixa dos rios é importante; implementar políticas ousadas que conciliem produção agrícola com a preservação dos recursos hídricos é vital para o futuro de Mato Grosso do Sul. Enquanto isso não for feito, a Sala de Situação será não apenas um observatório, mas um memorial de uma crise anunciada.