Uma das cenas mais icônicas de Pantanal, novela de Bruno Luperi exibida pela Rede Globo e remake da obra de 1990 de Benedito Ruy Barbosa, avô de Luperi, foi protagonizada pelo chalaneiro Eugênio (Almir Sater) e o peão Trindade (Gabriel Sater). Pai e filho na vida real, ambos realizaram um belíssimo duelo de violas, que tinha como pano de fundo um churrasco à moda pantaneira realizado na fazenda de José Leôncio (Marcos Palmeira). "Fiquei emocionado de ver essa cena. O churrasco, a musicalidade e a convivência em torno do fogo é algo que acontece muito no Pantanal", comenta o chef e pesquisador sul-mato-grossense, Paulo Machado, que é autor do livro Cozinha pantaneira: comitiva de sabores, publicado pela editora Bei.
Entre paisagens de tirar o fôlego, lendas como a da mulher que vira onça e do velho que se transforma em sucuri, o receituário pantaneiro surge diante dos olhos e abre o apetite dos telespectadores da novela das nove. A começar pelo próprio churrasco, que marca presença em algumas cenas de Pantanal.Tudo começa por um buraco em formato retangular que é aberto na terra. Em vez de carvão, ali se queimam toras de madeira de angico, que conferem um sabor defumado para a carne - o grande diferencial do churrasco pantaneiro. E, por cima, vai uma estrutura de madeira, que serve para apoiar os espetos de carne, também feitos de madeira.
Aliás, a carne é a grande protagonista da cozinha pantaneira e surge de diferentes formas no receituário local. Durante as comitivas, em que os peões conduzem o gado pelas fazendas da região, eles levam consigo insumos não perecíveis como carne-seca, arroz, feijão, macarrão e uma gordura, que servem como base de receitas substanciosas como arroz de carreteiro e macarrão de comitiva - em algumas cenas da novela é possível ver os peões Tibério (Guito) e Tadeu (José Loreto) com um prato apoiado numa mão, uma colher em punho na outra, devorando essas receitas.
"Esses pratos fazem parte do quebra-torto. É o que os peões comem por volta das quatro e meia da manhã, para ter energia para aguentar a lida no campo", conta Mirica Vianna, produtora de arte da novela. Juntamente com a equipe de direção da trama, ela viajou ao Pantanal em janeiro do ano passado em busca de locações e referências para recriar alguns dos cenários da novela dentro dos Estúdios Globo, no Rio de Janeiro - somente as cenas externas são gravadas in loco.
Sem dúvida, as cozinhas das sedes das fazendas de José Leôncio (Marcos Palmeira) e de Tenório (Murilo Benício) receberam uma atenção especial da equipe de arte da novela. E o que se prepara por lá foi inspirado em suas pesquisas com os cozinheiros das fazendas pantaneiras. "Nas cenas em torno da mesa, a gente sempre coloca chipa, uma espécie de pão de queijo mais sequinho em formato de ferradura, além da sopa paraguaia, que é um bolo de milho salgado, que são dois pratos típicos da região", explica ela, referindo-se às receitas que são influência da Bolívia e o Paraguai, que fazem divisa com o Mato Grosso do Sul.
Outro detalhe das cenas são as cerâmicas confeccionadas pela comunidade indígena Terena, nativa da região, de tonalidade avermelhada e desenhos na cor branca, que surgem durante as cenas das refeições. "As comidas preparadas na tapera de Juma (Alanis Guillen), preparos muito simples e com poucos ingredientes, foram inspiradas na cozinha terena", explica a produtora de arte da novela.
A maior parte das cenas da atriz Dira Paes, que vive a personagem Filó na novela, são na cozinha. Cozinheira de mão cheia na vida real, Dira põe a mão na massa para valer nas cenas e compartilha alguns desses momentos em suas redes sociais. "Como tem fogão de lenha e forno no cenário, muitas vezes ela cozinha de verdade", conta Mirica. Em cena, Dira já preparou arroz carreteiro, bolo, farofa de linguiça com ovos, tortas salgadas e até pastel de queijo com goiabada - tudo devorado pela equipe na sequência.
"Durante as gravações, o aroma da comida envolve a todos e traz uma veracidade às cenas", acredita a atriz. Ela chega a combinar com Leticia Galm, que é assistente de Mirica, quais pratos ela pode preparar em determinadas cenas. "A comida traz ação para a Filó, personagem da Dira, que é uma mulher para a qual a vida é aquela fazenda, é alimentar aquele homem que ela tanto ama, o filho e todos que vivem naquele ambiente. Sem dúvida, é uma das formas que ela usa para demonstrar afeto", analisa Mirica.
Na ala das bebidas, o tereré é um dos ícones pantaneiros. Trata-se da mesma erva-mate do chimarrão, só que consumida com água gelada no Pantanal - tudo a ver com o clima escaldante da região. E pode ganhar o reforço de gotas de limão e folhas como hortelã. A erva é colocada dentro da guampa, copo feito do chifre do boi, que é preenchido de água gelada. Depois, pode bebê-lo com a ajuda de uma bomba, um canudo de metal com um infusor - o José Leôncio (Palmeira) e os peões das fazendas sempre aparecem na companhia de sua guampa e garrafa de água gelada.
"Encomendamos de um artesão local uma cuia com as iniciais JL, para o personagem do José Leôncio", conta Mirica. O ator Marcos Palmeira, que também participou da primeira versão da novela, ficou tão viciado na bebida que comprou uma garrafa só para ele e, mesmo nos dias de folga, anda para cima e para baixo na companhia de seu tereré. Loreto e Guito também compartilham desse apreço pela bebida.
A imigração também deixou o seu legado na cozinha do pantanal sul-mato-grossense. Embora a novela não retrate esse lado da culinária pantaneira, a influência japonesa, mais precisamente de Okinawa, também é marcante na região. "Os okinawanos chegaram em Campo Grande (MS) na década de 1970 e trouxeram com eles o sobá, que hoje é considerado o prato típico da capital sul-mato-grossense", explica Jean Haddad, que comanda o restaurante Sobaria na capital paulista.
À base de macarrão de trigo sarraceno imerso em um caldo, o prato ganhou uma nova versão na capital sul-mato-grossense. Em vez de porco, é servido com carne bovina e omelete fatiadas. Haddad, que torce para que o prato seja mostrado em algum momento da novela. "Quando os clientes vêm jantar, eles pedem para que a televisão esteja ligada na novela. É um sucesso", conta ele.
Quem também tem sentido a repercussão da novela é Machado. "Não só tem ajudado a despertar a atenção do público para os traços culturais do Pantanal, da relação que a gente tem com a música, com os elementos da fronteira e com a nossa cozinha, mas há tempos não via uma novela que tivesse uma relação tão próxima com o povo brasileiro", observa o chef e pesquisador. Resta saber quais pratos ainda serão apresentados na novela, mas isso é cena dos próximos capítulos.
Ficou com vontade de provar alguns dos pratos que aparecem na novela? Localizado no shopping Market Place, o gexperience, espaço interativo dedicado aos canais e programas da Globo, também abriga um bistrô, no qual é possível saborear alguns menus inspirados em novelas de grande sucesso da emissora, como Avenida Brasil, Caminho das Índias e Chocolate com Pimenta. E, no mês passado, a novela das nove também ganhou um menu para chamar de seu.
Elaborado pelo chef Alex Fediczko, o cardápio inclui bolinho de abóbora com carne-seca servido com vinagrete para a entrada, arroz carreteiro (com carne-seca, linguiça defumada, pimentões, tomate, cheiro verde e crocante de cebola) como prato principal, além de cocada de forno com praliné de amêndoas e geleia de damasco para a sobremesa (R$ 110, por pessoa). "Eu me inspirei na cozinha regional brasileira, nos ingredientes presentes no dia a dia, além dos pratos que se come durante essa lida com o gado", explica Fediczko, que é responsável pelos cardápios dos espaços gastronômicos do gexperience. O espaço ainda abriga algumas peças do figurino de Pantanal, como as roupas do peão Quim (Renato Teixeira), personagem da primeira fase da novela.
Quem também se inspirou nos sabores do Pantanal foi o chef italiano Massimo Battaglini, do recém-inaugurado restaurante Urus, que pertence ao grupo Jamy, de Cuiabá (MT). Porém, ele fez uma expedição no outro Pantanal, o do Mato Grosso, que reúne os biomas do cerrado, pantanal e amazônia. Battaglini e o chef Victor Naddeo, que também assina o cardápio, se inspiraram nos ingredientes locais para conceber o menu autoral. "Fiquei impressionado com a delicadeza do pintado, que é um peixe de água doce", conta ele, que apresenta um tartar de pintado servido com papel de arroz frito (R$ 64). Outro ícone da região é a piranha, que ganhou fama de devoradora de alguns personagens de Pantanal. Em vez de servi-la na forma de sashimi e ensopado, algo típico na região, Battaglini apresenta um capeletti de piranha (R$ 69) - a carne serve de recheio da massa e base para o caldo. "A gente só não usa o 'sorriso'", brinca o chef.