Mais de um terço dos estados do país não divulga a raça das mulheres vítimas de violência. E, mesmo entre os que divulgam, os dados apresentam falhas, já que, em boa parte, o campo aparece como “não informada”.
Considerando apenas os dados disponibilizados de forma completa, os números apontam que cerca de 75% das mulheres assassinadas no primeiro semestre deste ano no Brasil são negras. O percentual diminui para quase 50%, no entanto, do total de vítimas de agressões cometidas por companheiros em casa e estupros.
Os dados, inéditos, fazem parte de um levantamento feito pelo G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal. Foram coletadas informações de raça de todas as mulheres que foram vítimas de homicídio doloso (incluindo feminicídio), lesão corporal em contexto de violência doméstica, estupro e estupro de vulnerável no primeiro semestre de 2020.
Segundo as especialistas consultadas pelo G1, é importante ter dados sobre as raças das vítimas de violência para entender como os crimes acontecem na prática entre os diferentes grupos populacionais e para pensar em políticas públicas para grupos mais ou menos vulneráveis.
“Desde 1996, nós temos o quesito de raça/cor nos documentos de saúde pública. A gente tem que poder cruzar isso com as outras variáveis, com as condições de vida que a mulher estava inserida quando houve a mortalidade para conseguir entender os contextos”, diz Jackeline Romio, pesquisadora da Universidade de São Paulo.
A socióloga e consultora Ana Paula Portella também afirma que entender os perfis raciais é essencial.
“O Brasil é um país de maioria negra, com 56% da população preta ou parda. E a gente tem um impacto imensamente desproporcional da violência, assim como a gente tem de outras vulnerabilidades, sobre essa população negra”, diz Portella.
“Então é essencial que, em qualquer análise que se faça, a gente procure verificar como o problema se apresenta para a população branca e para a população negra.”
Os contextos de violência entre mulheres brancas e negras é diferente, segundo as especialistas, por causa do racismo institucional e estrutural da sociedade.
“A gente termina formulando políticas pretensamente universais, que iriam atender a todas as mulheres, mas, na verdade, a gente termina atendendo só as mulheres brancas. Isso segue reforçando e reproduzindo a vulnerabilidade das mulheres negras, porque não há políticas específicas voltadas para as necessidades delas e seus riscos específicos”, diz Portella.
Por isso, a transparência e a divulgação destas informações raciais são tão importantes. “Se você não tem evidências, não comprova, não diagnostica e não pode exigir políticas de correção para essas barreiras”, diz Romio.
Isabela Sobral e Juliana Martins, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concordam. “A ausência dessa informação sugere uma cegueira institucional por parte das secretarias de Segurança Pública. Se não conseguimos ver qual o problema, não conseguimos enfrentá-lo”, dizem. “Que políticas públicas são essas que protegem apenas parte das vidas que devem ser preservadas?”
As dificuldades, porém, não são poucas. Além da não divulgação dos dados, a falta de padronização chama a atenção. Há casos em que “albino” foi considerado uma raça, por exemplo, sendo que o albinismo é uma doença, e não uma categoria racial.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística trabalha com as seguintes opções: branca, preta, parda, indígena ou amarela.
A maioria dos estados que não divulgaram os dados afirma que, ou os dados não são preenchidos nos boletins de ocorrência, ou os sistemas que coletam as informações consolidados não têm parâmetros para selecionar os dados específicos de raça.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, por exemplo, afirma que, para chegar às informações de raça, “é necessário checar os dados brutos de boletins de ocorrências”. Segundo a pasta, porém, a base “apresenta duplicatas e campos em branco e, mesmo eliminados esses problemas, os números são diferentes dos dados consolidados pela SSP”.
Já o Ceará diz que o campo de raça não é preenchido para alguns crimes “em razão da subjetividade da informação, o que gera uma inconsistência nos dados, impossibilitando a geração de uma estatística fiel ao cenário”.
Vale destacar que as falhas de preenchimento e a falta de transparência não acontecem apenas para os casos de crimes cometidos contra mulheres. Um levantamento do Monitor da Violência sobre letalidade policial aponta que quase metade dos estados do país também não divulga dados de raças das pessoas mortas por policiais.
Por isso, Romio defende a existência de políticas públicas que regulamentem o preenchimento dos campos de raça/cor no setor de segurança pública. “Precisa de vontade política de fazer as normas técnicas para que documentos sejam sistematizados de forma tão perfeita quanto para outras variáveis, como idade e sexo. Por exemplo, caso a pessoa não preencha o campo de raça, o formulário não pode avançar.”
Mesmo com falhas, os dados disponíveis de raça mostram um lado já conhecido dos indicadores de violência no país: a maior parte das mulheres mortas é negra.
Dos 889 casos de homicídios dolosos que apresentam, de fato, informações sobre raça, 650 (73%) envolvem mulheres pardas ou pretas. Segundo classificação do IBGE, juntos, pretos e pardos constituem os negros.
Esse percentual, porém, cai bastante nos casos dos crimes não letais coletados pelo G1. Em cerca de metade dos registros de lesão corporal em decorrência de violência doméstica, estupro e estupro de vulnerável as vítimas são mulheres negras.
Segundo a pesquisadora Jackeline Romio, isso não significa que há, de fato, menos mulheres negras sendo agredidas ou estupradas, mas que as mulheres negras estão denunciando menos que as brancas.
“A gente deve levar em consideração que o dado de mortalidade é o mais robusto de todos. Ele é a ponta do iceberg, pois, até chegar na morte, outros fatos violentos aconteceram antes”, diz Romio. “Então, se o dado da morte aponta mais mulher negra, a gente desconfia do subregistro dos outros crimes, que apontam menos. A mulher negra tem mais dificuldade em notificar.”
A pesquisadora lembra que o crime de homicídio tem o registro obrigatório e “duplo”, já que é contabilizado nas delegacias e nos sistemas de segurança pública através do boletim de ocorrência e nos hospitais e nos dados de saúde através do atestado de óbito.
Já os casos de agressões e estupros dependem das denúncias das próprias vítimas. Por isso, sofrem mais com os efeitos da subnotificação.
“As mulheres negras são mais pobres, moram em áreas mais precárias, mais distantes da rede de atendimento. Têm menos recursos financeiros para procurar ajuda, para conseguir um carro, um transporte, e têm redes de apoio menores”, diz Portella.
“Quando chegam a esses serviços, elas enfrentam um racismo institucional. Ou seja, nem sempre são ouvidas, nem sempre são respeitadas, nem sempre a sua queixa é levada a sério. Isso termina desestimulando essas mulheres a fazerem uma denúncia e procurar ajuda na rede institucional."
Além disso, o atual contexto do país colabora com a falta de denúncias, segundo as especialistas.
“A gente está em um contexto de pandemia e fechamento parcial dos serviços públicos que resultam em uma barreira institucional para que a mulher consiga fazer essas queixas e denúncias. Tem a ver também com transporte, com o funcionamento das instituições e dos próprios fóruns e da Justiça”, afirma Romio.
“As instituições fecharam, mas as ocorrências continuam. Isso causa subnotificação e gera esse ‘delay’ entre o número oficial e a realidade vivida pelas mulheres”, diz Jackeline Romio, pesquisadora da USP.