Fruto de uma longa campanha do movimento negro, a Lei 12.711, que estabelece a adoção de cotas raciais nas universidades federais, foi promulgada em 29 de agosto de 2012, a fim de democratizar o acesso às salas do ensino superior. Oito anos depois, a legislação se consolidou como importante política afirmativa, mas as instituições seguem lutando contra os não-negros, que ainda tentam fraudar o sistema.
“Essa foi uma vitória que mudou radicalmente a sociedade. Não é só a presença de pessoas negras, tem a ver com o impacto na pesquisa, na graduação e na pós-graduação, mas principalmente no tipo de conhecimento que é produzido pela população negra”, afirma Cássia Virginia Bastos Maciel, pró-reitora de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
“É um caminho incontornável, não há mais volta, a política de cotas é importante para a sociedade. É fundamental para que a universidade cumpra o seu papel social. Nós vivemos agora um momento de pandemia e temos visto como a universidade, apesar dos ataques sofridos, se mostra importante na oferta de soluções, e pessoas negras estão inseridas nesse processo”, finaliza Maciel.
Na outra ponta desta análise, está o combate às fraudes. As vagas são acessíveis para toda pessoa que se autodeclarar negra. Porém, a falta de fiscalização facilitava a vida dos fraudadores. Foi então, que em abril de 2018, foi publicada a Portaria Normativa nº 4, de 2018, que determinava a adoção do procedimento de heteroidentificação para legitimar o candidato às cotas.
Cada universidade passou, então, a formar bancas com cinco pessoas, todas experientes em temáticas raciais, “garantindo que seus membros sejam distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade”, conforme explica a portaria. Esses órgãos fiscalizadores fizeram com que, desde então, o número de denúncias disparassem.
Foi possível confirmar, via Lei de Acesso à Informação (LAI), que na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais, por exemplo, houve 92 denúncias de fraudes às cotas raciais em 2018. No ano seguinte, 2019, o primeiro com a aplicação da heteroidentificação, foram 105 casos suspeitos. Já em 2020, até o dia 22 de junho, a banca já havia analisado 152 possíveis fraudadores. O total são de 349 investigações de inscrições questionáveis.
A UFJF não informou, na resposta da LAI, quantos, dos 349 casos, foram confirmados. Ainda de acordo com a entidade, os estudantes que forem flagrados fraudando o processo de acesso às cotas raciais terão suas matrículas canceladas e serão expulsos da instituição.
Outras universidades também apresentaram altos índices de denúncias desde 2018, que foram analisadas pelas bancas nos estados, como na Universidade Federal do Maranhão (197); Universidade Federal de Goiás (125); Universidade Federal do Mato Grosso (110); Universidade Federal do Ceará (98); e Universidade Federal de Ouro Preto (80).
Maciel lembra que o critério para aceitação do candidato é fenótipo, e que candidatos que perdem a vaga estão indo à Justiça “alegar ancestralidade e consanguinidade”. Por outro lado, a pró-reitora admite que há tentativas de fraude. “Tem situações em que pode haver um desconhecimento, mas tem outras que é dolo. São pessoas brancas que querem participar do processo e, inclusive, manipulam, seja no penteado do cabelo, maquiagem e até bronzeamento do sol”, explica.
Gravidade
Para Marcilene Garcia de Souza, pesquisadora de Relações Raciais e Ações Afirmativas e professora de sociologia do Instituto Federal da Bahia (IFBA), os mecanismos de fiscalização de possíveis fraudes são importantes e devem ser mantidos.
“Quando um jovem branco ocupa a vaga de um negro, um negro deixou de entrar. Então, a gente está falando, sim, de algo que é muito grave, que é o racismo, mas também de crime de falsidade ideológica. O racismo institucional reproduzido nas instituições e no judiciário é de não reconhecimento de que aquele individuo cometeu uma fraude grave. Porque é um jovem branco, passa por equivocado: ele ‘não teve a intenção’, ele 'achou que era pardo', ele 'sempre se viu negro'. Quando a gente sabe muito bem que as pessoas negras sabem o que é ser negro todos os dias, diuturnamente, nesse país”.
Souza, que em seu doutorado estuda as cotas raciais nas universidades e concursos públicos, tem acompanhado as bancas de heteroidentificação para confirmar os métodos dos órgãos fiscalizadores.
“Se você fizer um dado estatístico sobre as instituições que tem cotas raciais há 10 ou 15 anos, ou mesmo as que têm há 8 anos, elas estão construindo agora a estratégia de banca de heteroidentificação. E ainda quando essas instituições dizem 'vamos fazer', há um burburinho dentro dessas instituições, como [dizendo] 'que absurdo', 'vai constranger'. Constranger quem? As pessoas brancas, porque os negros estão acostumados a serem constrangidos todos os dias”, critica a pesquisadora.
Embora a Lei de Cotas estivesse estabelecida, em alguns cursos não se notava a presença dos alunos negros, como lembra a vice-diretora do Instituto de Química da UFBA, Bárbara Carine Soares Pinheiro, que integra o comitê de heteroidentificação da universidade.
“Os estudantes notavam que existiam uma reserva de vagas, mas não se percebia esse enegrecimento dos cursos. Por exemplo, havia 10 vagas no curso de Medicina, mas as pessoas não sabiam explicar quem eram esses estudantes que entraram nessas 10 vagas. Foi um fenômeno que ocorreu nos cursos mais concorridos como Direito, Medicina e Engenharia.”
A democratização da universidade brasileira precisa seguir seu curso, expressa Pinheiro, que pede continuidade no combate às fraudes. “Isso significa possibilitar acesso de pessoas que historicamente tiveram suas possibilidades retiradas, solapadas. Essas possibilidades de um povo que não vai só, que é coletivo. Quando uma pessoa negra se projeta, toda sua rede se projeta junto com ela”, encerra.